Ninguém duvida que o jovial Tullo Cavallazzi - apenas 71 anos, numa época em que a vida começa aos 50 - pediu "licença" e foi arranjar arquibancada melhor pra ver o Avaí jogar, lá de cima do etéreo camarote.
Sem exagero, Tullo era um ícone, um distintivo da terra, um marco como a Felipe Schmidt, a Praça XV, o Miramar, o Cambirela. Era, sobretudo, uma inesgotável fonte de bondade. Sua bonomia era uma espécie de "contraponto" da escura caverna por onde mergulha o homem deste terceiro milênio, afogado em guerras, morticínios e desonestidades.
Tullo era um honesto visceral e medular. Um modesto funcionário público de múltiplos talentos, os quais "encarcerava", confinando-os apenas para o consumo interno, sem lhes dar qualquer publicidade: assim, era um superdotado desenhista, um chargista de grandes "eurekas", um belo escritor, tudo para consumo privado. Era da sua natureza não ser "exibido" - e fazer sempre o bem "sem olhar a quem".
Por isso era tão amado pelos humildes, pelos destituídos, pelas crianças e pelos passarinhos. Seu pequeno quintal era um imenso viveiro. Irresistível chamariz para curiós, pardais, curruíras, quero-queros e todos os tipos das avezinhas que o vulgo apelida de "rolinhas". Tullo multiplicava, diariamente, as suas refeições, seus alpistes e quireras, como se fosse o próprio Nazareno multiplicando os peixes.
Seu sobrenome, portanto, bem que poderia agregar ao Cavallazzi, sem surpresa, o "de Pádua", pois, sem dúvida, era um primo-irmão de São Francisco. Assim como poderia perfilhar, igualmente, um "dos Santos", de Francisco Manoel dos Santos, o Garrincha, outro "alma de passarinho", outro "bom" pela própria natureza .
De Tullo Cavallazzi, diria Nelson Rodrigues:- Era um avaiano epidérmico e inconsciente, enquanto jogou no Figueirense, no Guarani e no Paula Ramos. Ficou sabendo de sua alma "azul", aos poucos, como os santos tomam consciência da sua santidade. Mas era avaiano desde sempre - desde os 40 séculos antes do Nada. Tinha a alma de uma cambaxirra, uma rolinha isenta do imposto de renda. A própria Pomba do Divino vinha diariamente comer na palma de sua mão, como se nele reconhecesse o amigo e o provedor - e dele necessitasse a benção.
Desenhava com um traço que porejava talento - se quisesse, seria profissional do "bico-de-pena" em qualquer publicação do Mundo. Desenhava tão bem que "desenhou" o próprio rosto, aquele que usava todos os dias, com um bigode farto e triangular, o jeitão de vovô Gepeto, adorado pelas crianças. Algumas delas, chorando, foram ao seu funeral, vestidas de azul e branco, como alvi-celeste era o lábaro que cobria a sua mortalha.
Virtuose do bico-de-pena, artesão da massa em araldite - que modelava suas artísticas miniaturas de "bois-de-mamão" - maestro fundador da "Philarmonica Desterrense", síntese carnavalesca de seu generoso e magnânimo bom humor, Tullo "jogou" pelo Avaí ainda neste mesmo sábado em que subiu ao Pai.
Ou alguém duvida de que aquele gol de cabeça do Vandinho - metro e meio de altura - foi, na verdade, a primeira obra estelar do maestro da Philarmonica? A bola, como os passarinhos, procura os seus provedores - e Tullo vai continuar jogando, lá do alto, a mesma bola redonda que jogou aqui embaixo, ele e seu irmão Milton, o "Bitanha", craque que levou toda a família para o horizonte azul...Foi isso. Tullo foi se incorporar ao azul, que não é deste mundo. Sugere a idéia de eternidade tranqüila e altaneira, que é sobrenatural. O azul é celestial.
Todas as cambaxirras foram recebê-lo na porta do Céu.