De repente, até os intelectuais entendem de futebol – eles que, segundo Nelson Rodrigues, “nunca bateram um lateral”.
Vejo beletristas defendendo táticas e estratégias, falando em “nó tático” e “sistema de jogo”, como se o velho esporte bretão guardasse alguma semelhança com um tabuleiro de xadrez. No Brasil, a maior novidade do futebol é a velha retranca, o antigo ferrolho suíço ou o carcomido “catenaccio” italiano. Os jogos ficam feios, truncados, não há espaços para uma tabela, um “lençol”, uma jogada de efeito.
Jean-Paul Sartre nunca bateu um lateral, nem jamais deu um pontapé – mesmo quando era traído por Simone de Beauvoir. Mas Albert Camus e Vladimir Nabokov foram goleiros, respectivamente do Racing da Argélia e do Dínamo de Moscou.
Pego a “gorduchinha” e tento umas embaixadinhas, em defesa dos que trocam passes e letras em cima de um papel ou de uma tela de computador. Meu Deus! Sinto-me tão ridículo quanto Bill Clinton, Lula ou Barack Obama, tentando controlar a “perseguida”. Falta jeito.
No conto, na crônica, no teatro e até na poesia, é bem respeitável o time que bateu a sua bolinha literária. Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, abordou o futebol sob a ótica política e social em “Chapetuba Futebol Clube”. Rubem Fonseca produziu um conto brilhante sobre o assunto em “Feliz Ano Novo”.
O drama dos garotos que sonham com a glória dos gramados é também o tema de um romance de José Lins do Rego, “Mãe d’Água”, e de um instigante conto de Rubem – “Abril, no Rio, em 1970”. Em “Juiz”, o magnífico contista João Antônio constrói pequena obra prima para retratar essa pantomima já corriqueira no futebol dos arraiais interioranos: o juiz que corre para escapar do linchamento da torcida. Edilberto Coutinho ganhou um [Casa de las Americas] com o seu livro “Maracanã Adeus”, alinhando um team de exatos 11 contos.
[O futebol brasileiro evocado na Europa], com esse “nome” de ensaio literário, não parece, mas é o título de um admirável poema de João Cabral de Mello Neto, com direito às [embaixadinhas] de um verso antológico:
- “O futebol trata a bola com malícia e atenção,/ Dando aos pés astúcias de mão” – atenção Silas! – que tal escalar os “realmente técnicos”, deixando os mais toscos no banco, e não vice e versa?
O mesmo futebol que inspirou esses versos, iluminou, igualmente, a prosa poética de um mestre do gênero, o falecido Armando Nogueira (“Drama e Glória dos Bicampões” e “O Homem e a Bola”), cuja frase límpida e esmerada fizeram-no merecedor do cognome “o Machado de Assis da bola”:
- Deus castiga a quem o craque fustiga.
- Se a bola não quica, mau caráter indica.
- Gol de letra é injúria, gol contra é incesto, gol de bico é estupro.
De alguma forma, Nelson Rodrigues, Albert Camus, Vladimir Nabokov, José Lins do Rego (com o romance “Água Mãe”), Armando Nogueira ou João Cabral – escrevendo, ou até praticando o esporte bretão – todos agregaram o seu estilo, o seu suor literário e as suas digitais no limitado retângulo de uma folha de papel, ou na exígua tela de um computador – e nesses espaços assinalaram os seus gols.
Falo desses luminares da crônica, esportiva ou literária, para tentar justificar a frequência com que me atrevi, aqui, sem o menor brilho, a tratar de temas do futebol brasileiro e catarinense.
Amanhã mesmo, Santa Catarina viverá um dia especial, um apogeu: através do Avaí, disputará uma semifinal de Copa do Brasil, no histórico Estádio de São Januário, contra o não menos tradicional Vasco da Gama.
Alguns expoentes das letras e das artes plásticas catarinenses amavam o “belo jogo”, embora um erudito como José Boiteux o abominasse.
Dois virtuoses dos pincéis, Hassis e Meyer Filho, foram apaixonados adeptos do futebol e fervorosos torcedores do Avaí.
Como diria outro intelectual do futebol, Nelson Rodrigues: “até os desencarnados acompanharão esse jogo estelar, amanhã à noite”.
A expectativa é de que o quadro final seja a pintura de “um por do sol de folhinha”, com matizes predominantemente azuis e brancos.